Totem e Tabu: pontos de concordância entre as proibições dos neuróticos obsessivos e os tabus dos povos primitivos

09/05/2017

Escrito por: Greta Fernandes Moreira *

     "No princípio foi o Ato". Im Anfang war der Tat. É com essa frase da Cena 3 do romance Fausto de Goethe que Freud encerra seu brilhante estudo Totem e Tabu, sua tentativa de, em suas palavras, "aplicar perspectivas e resultados da psicanálise a problemas ainda não solucionados da psicologia dos povos" (1913, p. 14).

    Procurando entender a necessidade humana de se estruturar com base na exogamia, e pensando o incesto como a decorrência de uma lei ou moral natural, ele segue minuciosamente a investigação antropológica de James Frazer, lançando a hipótese de que o estudo comparativo da 'psicologia dos povos da natureza' e da 'psicologia do neurótico', revelada pela clínica psicanalítica, mostrará diversos pontos em comum.

    Mergulhando nas diversas pesquisas realizadas à época, fazendo, como ele próprio afirma em seu Prefácio, uma "intermediação entre etnólogos, linguistas, folcloristas, etc." (p. 15), Freud dialoga, em seus três primeiros ensaios, com as teorias existentes a respeito do totemismo, do tabu e do animismo. 

   No primeiro ensaio, denominado "O Horror ao Incesto", Freud nos fala sobre os aborígenes australianos, tribos descritas pelos antropólogos como sendo dos selvagens mais atrasados e miseráveis, onde, incrivelmente, já se encontram traços de uma organização social a serviço do propósito de evitar relações sexuais incestuosas. Traz, assim, a exogamia como instituição relacionada ao totemismo, a "lei" que proíbe relações sexuais entre pessoas do mesmo clã totêmico, já definindo a fronteira entre a natureza e cultura.

   Nesse sentido, sendo a descendência, no totemismo, transmitida pela mãe, resta interditado ao filho manter relações sexuais com sua mãe e irmãs, visto que são do mesmo totem. Tal regra torna, pois, impossível ao homem manter relações sexuais com as mulheres de seu próprio clã, uma vez que todos os que descendem do mesmo totem são parentes (totêmicos).

    Destaca, ainda, que a violação desta proibição não é deixada ao que se poderia chamar de punição 'automática' das partes culpadas, como no caso de outras proibições totêmicas, à exemplo da existente contra a morte do animal totem. Ao contrário, o incesto é vingado da maneira mais enérgica por todo o clã, como se fosse uma questão de impedir um perigo que ameaça toda a comunidade ou como se tratasse de alguma culpa que a estivesse pressionando.

  Fazendo um paralelo com as conclusões que obteve com a sua clínica psicanalítica, Freud busca, ousadamente, descobrir o significado original do totemismo a partir de seus traços infantis, dos indícios que reafloram no desenvolvimento de nossas crianças. Com efeito, a psicanálise nos ensina que a primeira escolha sexual do menino é incestuosa - concerne aos objetos proibidos, a mãe e a irmã - e também nos deu a conhecer as vias pelas quais ele se liberta, ao crescer, da atração do incesto. Assim sendo, a relação com os pais, dominado por anseios incestuosos, seria o complexo nuclear da neurose.

     O segundo ensaio, denominado "O tabu e a ambivalência dos sentimentos", inicia trazendo a origem polinésia da palavra Tabu, destacando os seus dois sentidos, frise-se, contrários: por um lado, 'sagrado', 'consagrado'; e por outro, 'misterioso', 'perigoso', 'proibido', 'impuro'. O Tabu traz, consigo, importantes proibições, dentre as quais, as mais antigas são, propriamente, as leis básicas do totemismo: não matar o animal totêmico e evitar relações sexuais com membros do clã totêmico do sexo oposto.

     Com isso, Freud chega à conclusão de que os tabus dos selvagens polinésios, afinal de contas, "[...] não se acham tão longe de nós como estivemos inclinados a pensar, a princípio; as proibições morais e as convenções pelas quais nos regemos podem ter uma relação fundamental com esses tabus primitivos [...]" (Freud, 1913, p. 48).

   A partir dessa hipótese, vislumbra diversas semelhanças entre a clínica psicanalítica das neuroses obsessivas e os tabus dos povos primitivos. Isso porque os obsessivos criam para si verdadeiras proibições de tabu, e as seguem de forma tão rigorosa como os selvagens obedecem às que são comuns à sua tribo ou sociedade.

     A primeira dessas semelhanças, que se pode facilmente perceber, é o fato de que as proibições obsessivas envolvem renúncias e restrições tão extensivas na vida dos que a elas estão sujeitos quanto as doenças do tabu. Além disso, ambos são destituídos de motivo. Dessa forma, não se faz necessária nenhuma ameaça externa de punição. Há uma certeza interna, uma convicção moral, de que qualquer violação conduzirá à "desgraça insuportável".

   Um terceiro ponto apontado por Freud é o deslocamento de uma proibição obsessiva e a transmissibilidade do tabu. Como se pode notar na clínica de pacientes obsessivos, as suas proibições têm a característica de serem extremamente deslocáveis, estendendo-se de um objeto a outro por meio de qualquer conexão, tornando também esse novo objeto "impossível".

    Por fim, outra importante semelhança entre os obsessivos e o tabu dos povos selvagens é a ambivalência nas atitudes. Ou seja, o desejo original de fazer o proibido continua a existir nos povos onde há o tabu. Nada mais gostariam de fazer, em seu inconsciente, que infringi-las, mas também tem receio disso. Receiam justamente porque querem e o temor é mais forte que o desejo.

     Com isso, Freud observa que só podemos chegar a uma conclusão: se as mais antigas e importantes proibições do tabu são as duas leis fundamentais do totemismo - não liquidar o animal totêmico e evitar relações sexuais com os indivíduos do mesmo totem que são do sexo oposto - estes devem ser, na realidade, os dois mais antigos e poderosos apetites humanos.

    Continuando a tecer as suas hipóteses, no quarto, e último ensaio, Freud utiliza-se de três grandes referências para, finalmente, nos apresentar o seu polêmico mito científico. O primeiro deles é Charles Darwin. O naturalista inglês, pai da teoria do evolucionismo biológico, havia observado, em suas viagens exploratórias, o comportamento de diversos grupos de primatas superiores que viviam em pequenas hordas, onde havia um macho líder que a dominava. Tal observação dos hábitos de vida dos macacos superiores foi suficiente para Freud deduzir que também o homem viveu originalmente em pequenas hordas, dentro das quais o ciúme do macho mais velho e mais forte impediu a promiscuidade.

    A segunda fonte inspiratória foi Atkinson, o primeiro a notar que essas condições da horda primitiva de Darwin impunham praticamente a exogamia dos homens jovens. De forma que cada um desses jovens expulsos podia fundar uma horda semelhante, na qual vigorasse a mesma proibição de atos sexuais motivada pelo ciúme do chefe, e no curso do tempo essas circunstâncias resultariam na regra, agora consciente em forma de lei: "Nada de relações sexuais entre companheiros de horda". Tal regra, como podemos notar, após o estabelecimento do totemismo teria se transformado em: "Nada de relações sexuais no interior do totem".

   Por último, tomou por base a refeição totêmica relatada por Smith, que notou que a matança e a devoração periódica do totem, em épocas anteriores à adoração de divindades antropomórficas, teria sido um importante elemento da religião totêmica. Através desse costume, em uma determinada época do ano, realizava-se uma solenidade, da qual todos deveriam participar. O que se revelava um aparente paradoxo: se, durante todo o ano não se podia fazer nenhum tipo de mal ao totem, por que, naquela ocasião especial, isso era possível?

   É a partir de tais sugestões e questionamentos que Freud constrói seu mito científico, localizado em um momento inicial, anterior ao totemismo e à própria civilização, um "estado primevo da sociedade que não foi observado em nenhuma parte" (p. 216).

    Encontrava-se, aí, na horda primeva, um pai violento e ciumento, que guarda para si todos os gozos, reservando-lhe todas as fêmeas e que expulsa os filhos quando crescem. Eis, então, o pequeno grande mito:

[...] Certo dia, os irmãos expulsos se juntaram, abateram e devoraram o pai, assim terminando com a horda primeva. Unidos, ousaram fazer o que não seria possível individualmente. (Talvez um avanço cultural, o manejo de uma nova arma, tenha lhes dado um sentimento de superioridade.) O fato de haverem também devorado o morto não surpreende, tratando-se de canibais. Sem dúvida, o violento pai primevo era o modelo temido e invejado de cada um dos irmãos. No ato de devorá-lo eles realizavam a identificação com ele, e cada um apropriava-se de parte de sua força. A refeição totêmica, talvez a primeira festa da humanidade, seria a repetição e a celebração desse ato memorável e criminoso, com o qual teve início tanta coisa: as organizações sociais, as restrições morais, a religião. (Freud, 1913, p. 216)

    Por meio de tal mito, Freud constrói a suposição de que o bando de irmãos era dominado, em relação ao pai, pelos mesmos sentimentos contraditórios que discerniu também no complexo paterno das crianças e dos neuróticos. Afirma que tais irmãos odiavam o pai, que constituía forte obstáculo a sua necessidade de poder e suas reivindicações sexuais, mas também o amavam e admiravam. Resta clara a ambivalência de sentimentos em relação a este pai, que incorpora três figuras. Primeiramente, temos a de líder, ao ser a exceção, uma vez que a regra se aplica a todos menos a ele, detendo, dessa maneira, o monopólio do gozo, inibindo os impulsos sexuais dos demais.

    Ele não faz laço social, vivendo seus impulsos de modo desinibido. Por outro lado, aquele que não faz laço, acaba por favorecer a formação deste laço social, por meio da valorização dos impulsos inibidos quanto à meta dos irmãos da horda. E era justamente isso que o pai primevo fazia, favorecendo, de tal forma, a criação de laço social entre os "irmãos", que passaram a vê-lo na figura de inimigo. A partir de então, não havia outro destino que poderia seguir. Aparece, portanto, a figura do pai morto.

    Esta foi uma decisão em ato. Os irmãos, unindo suas forças, percebem que chegou o momento de tomarem uma decisão: ou brigam entre si e elegem um novo líder e nada muda, ou, então, o bando detém-se no fato de que são capazes de inibir seus impulsos por si sós, não porque o pai, pela força bruta ou lei externa, os estaria proibindo.

    Há, portanto, aí uma introjeção da lei. O grupo inibe seus impulsos agressivos e sexuais e percebe que o gozo do pai é um gozo impossível, de maneira que insistir nessa via é cavar o próprio destino do pai primevo: a morte, o despedaçamento do corpo. É preciso, pois, renunciar à herança do pai: o monopólio do gozo, a sua plenitude máxima. Apenas por meio de tal renúncia é possível a fundação da civilização.

    "No princípio, foi o Ato". E, na hipótese freudiana, toda a sociedade repousa sobre um crime cometido em conjunto. A humanidade nasce de um crime comum. A civilização nasce pela repressão - um sistema de repressão coletivo. Vê-se, dessa forma, que o mito de Totem e Tabu projetou, sobre a origem da civilização, um mal-estar sombrio: crime, castigo, culpa e interdição - alicerces da ordem social. E, mais além, a partir da história das origens da civilização ali ilustrada, também o Complexo de Édipo.

   Isso porque o mito da horda primitiva explicaria a origem das tendências inconscientes homicidas e dos desejos incestuosos constitutivos desse complexo. A ideia de que os irmãos da horda teriam sido tomados pelo mesmo jogo de forças contraditórias em operação no Édipo - que é manifestado pelos pacientes neuróticos - encobriria uma conclusão ainda mais fundamental: os irmãos não teriam sido invadidos por sentimentos edipianos que teriam levado à ação mas, inversamente, o assassinato teria sido o fundador de tais sentimentos.

   Assim, ao invés do crime corresponder aos desejos edipianos, estes seriam estruturados por ele. Ou seja, matar o pai e possuir a mãe seriam tendências que existiriam no inconsciente, recalcadas, justamente a partir do crime de fato cometido. Consequentemente, a eliminação do pai primevo pelos filhos deixou traços indeléveis na história da humanidade e, quanto menos estes traços forem relembrados - recalcados -, mais substitutos se originariam para ocupar esse espaço, de forma que os indivíduos modernos viveriam repetindo, coletiva e individualmente, os traços deixados pelo ato fundante da civilização.

    Logo, se a configuração edípica se pretende universal, traduzindo na história familiar as proibições fundadoras de todas as sociedades humanas e fazendo do recalque uma operação psíquica herdada através da história, podemos supor que as formas de neurose descritas por Freud - histeria e neurose obsessiva - teriam mesmo sobrevivido aos tempos e se efetivado como organizações psíquicas adaptativas que perseveraram filogeneticamente.

    De toda forma, podemos concluir que o "mito de origem" de Totem e Tabu pretende reforçar a hipótese de que o desenvolvimento psíquico individual repetiria, em certa medida, o desenvolvimento psíquico da espécie, alcançando, inclusive, o surgimento do supereu - a principal herança do complexo de Édipo.

    Com efeito, a ocorrência histórica do supereu não seria em absoluto casual, pois ele teria como função original salvaguardar e garantir a obediência às leis que possibilitavam a vida coletiva, utilizando-se para isso, principalmente, do sentimento de culpa, que teria sido adquirido quando da morte do pai pelos irmãos reunidos em bando.

   Para Freud, também a sensação de culpa do neurótico obsessivo "[...] tem uma justificativa: está fundada nos intensos e frequentes desejos de morte contra os seus semelhantes que estão inconscientemente em ação dentro dele [...]" (1913, p.109/110). Esses impulsos hostis reprimidos pela proibição se relacionam, dessa maneira, a qualquer ato que possa, por deslocamento, representar, por sua vez, um ato hostil. A possibilidade de realização desse ato hostil conduz a um medo de uma ameaça de morte contra o outro. Assim, o desejo dá lugar ao medo.

   Para Freud, o neurótico obsessivo apresenta um conflito entre o supereu e o isso, razão pela qual o Eu busca afastar a inclusão de fantasias inconscientes e a manifestação de tendências ambivalentes. De forma que, quando o obsessivo usa o isolamento (através dos atos mágicos, que se desenvolvem na forma de sintomas), o que ele está buscando é impedir que ocorram associações e ligações do pensamento, seguindo uma regra fundamental da neurose obsessiva: o tabu do contato. O papel desse tabu é o de evitar o contato com o objeto, seja do investimento amoroso, seja do investimento agressivo.

   Assim sendo, podemos perceber que o tabu de contato do obsessivo é, na verdade, o tabu de entrar em contato com os seus próprios impulsos agressivos, que surgem na forma de autodestruição ou na forma de destruição do outro. O obsessivo evita, portanto, ao mesmo tempo, o contato com impulsos amorosos (pulsão de vida) e com impulsos agressivos (pulsão de morte) pelo simples fato de que, através desse contato com os investimentos amorosos, podem surgir investimentos agressivos. Cria-se, a partir daí, um sistema de proibições, no qual aparece o tabu de contato.

   Como podemos concluir, com sua impressionante prática clínica, Freud consegue, brilhantemente, ressaltar, de forma bastante precisa, os pontos de concordância entre as proibições dos neuróticos obsessivos e os tabus dos povos primitivos, utilizando-se da hipótese filogenética na tentativa de problematizar sobre a constituição psíquica em geral, os mecanismos originários implícitos nesse processo, o estabelecimento de determinados padrões de funcionamento (particularmente os egóicos) e as formas de organização psíquica.  

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. Totem e tabu. In: Obras Completas Sigmund Freud. São Paulo: Companhia das Letras, (1913) 2013, Vol. 11.

FUKS, Betty; BRAUSNTEIN, Nestor; BASUALDO, Carina. 100 anos de Totem e Tabu. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2013.

MALCHER, Fabio; FREIRE, Ana Beatriz. Laço social, temporalidade e discurso: do totem e tabu ao discurso capitalista. Ágora, Rio de Janeiro, v. XIX n. 01, p. 69-84 jan/abr 2016. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/agora/v19n1/1809-4414-agora-19-01-00069.pdf>. Acesso em 28 jun. 2016

SEDEU, Natalia Gonçalves Galucio. Neurose Obsessiva: Tabu do Contato X Pulsão de Morte. Estudos psicanalíticos, Belo Horizonte, n. 36, p. 121-133, dez.2011. Disponível em: <https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372011000300012&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 28 jun. 2016.

WINOGRAD, Monah. Mitos e origens na psicanálise freudiana. Cad. psicanal., Rio de Janeiro, v. 34, n. 27, p. 225-243, dez. 2012. Disponível em: <https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-62952012000200013&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 26 jun. 2016.

* Artigo apresentado na disciplina "Clínica das Neuroses" da Pós-graduação em Psicanálise com crianças - intervenção precoce do SEPAI - Universidade Cândido Mendes/RJ

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