Antígona e a Responsabilidade Trágica no Entre-Duas-Leis

15/02/2017

Escrito por: Greta Fernandes Moreira

Trabalho apresentado na XVIII Jornada de Formações Clínicas do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro, realizado nos dias 02 e 03 de dezembro de 2016.

      A tragédia sempre se mostrou relevante à experiência analítica, como demonstra a importante referência freudiana a Édipo Rei. O interesse psicanalítico pelo estudo da tragédia, segundo CORREA (2006), gira em torno de duas questões principais: a primeira seria a compreensão do âmago do enredo trágico, que tece a ação e destruição funesta e irremediável para o homem e a segunda, o fascínio que arrebata e prende o espectador ou leitor em um gozo intenso. Podemos supor que há, assim, uma ligação inconsciente do homem com o trágico e a tragédia, decorrendo o seu sucesso da possibilidade de ser uma via que nos conduz ao nosso próprio trágico, íntimo e subjetivo, ainda que compartilhável com o próximo ou até com toda a humanidade.

      Certamente, o principal corte interpretativo da tragédia promovido pela psicanálise vem, indubitavelmente, da abordagem procedida por Freud e sua capacidade de metaforizar a partir da mitologia grega, acreditando que a tragédia está presente em primeiro plano na nossa experiência. De tal forma que, mesmo depois de tomar o Édipo Rei como metáfora da relação primária incestuosa da criança, Freud ainda pede auxílio inúmeras vezes aos textos trágicos, tanto dos gregos, quanto, posteriormente, de Shakespeare, para se referir ao caráter trágico inerente ao ser humano. Lacan, por sua vez, utilizou-se de outra obra de Sofócles, Antígona, como ponto de virada no seu estudo da ética, no Seminário 7 (1959-1960). Ali, explica-nos que o sentido de se explorar esta tragédia é que "a imagem de Antígona, latente, fundamental, faz parte da moral de vocês, quer queiram ou não" (p. 335).

        Escrita por volta de 442 a.C, Antígona é considerada uma das maiores tragédias da humanidade, compondo a trilogia do ciclo tebano, juntamente com Édipo Rei e Édipo em Colono. No enredo, por nós já bastante conhecido, depois de matar o próprio pai, Édipo desposa a mãe, Jocasta, tendo com ela quatro filhos: Etéocles, Polinices, Antígona e Ismênia. A última das peça da trilogia inicia-se, justamente, quando Etéocles e Polinices se matam numa disputa pelo trono de Tebas. Como consequência, sobe ao trono Creonte, irmão de Jocasta, que, em seu primeiro édito, decide que Etéocles deverá ser enterrado com todo cerimonial, pompas e glórias devidas aos mortos e aos deuses, negando, por outro lado, o mesmo privilégio a Polinices, por ser inimigo da pólis. E assim começa o drama de Antígona. Ela se recusa a deixar o corpo do irmão sem os ritos sagrados, decidindo enterrá-lo, indo contra às leis humanas ao alegar obediência às leis divinas. Seguindo o seu desejo, enterra o corpo do irmão, razão pela qual é condenada à morte.

          Antígona foi, e continua nos sendo apresentada como uma heroína, aquela que transgride as leis da Pólis em nome de leis não escritas, as Leis Divinas, que remetem aos costumes de sua gente e sua época, pelos quais, segundo ela mesma, vale a pena morrer. Sua bravura ao lutar pelos valores familiares também lhe dá essa licença de heroína. Assim sendo, logo no prólogo da trama, em conversa com a sua irmã Ismênia, ela afirma, sem fraquejar:

Faze o que tu quiseres; quanto a meu irmão, eu o sepultarei! Será um belo fim, se eu morrer, tendo cumprido esse dever. (...) e meu crime será louvado, pois o tempo que terei para agradar aos mortos, é bem mais longo do que o consagrado aos vivos... Hei de jazer sob a terra eternamente! Quanto a ti, se isso te apraz, despreza as leis divinas! (SÓFOCLES, 2005, p.9)

         Portanto, extraindo das leis não-escritas dos deuses a força de sua decisão, a filha de Édipo age ao arrepio de seu próprio bem, posto que o destino daquele que desobedecer a lei da pólis - o édito real promulgado por seu tio Creonte - é inequívoco: a morte.

        Encontra-se, dessa maneira, a protagonista de nossa tragédia, aparentemente, num entre-duas-leis: uma lei divina, na qual fundamenta seu ato, uma ordem, pois, que lhe é heterogênea e radicalmente exterior, o campo dos deuses, que, segundo Lacan, habitam o real[1] (1960-1961 [1992], p. 51), esta morada impossível, e, por outro lado, uma lei da pólis, cuja validade perante o conjunto dos cidadãos não admite exceção.

       Nesse ponto, cumpre realizar uma breve diferenciação entre leis e costumes, campos não nitidamente distintos, mas sim, imbricados, e consequentemente, entre leis escritas, do direito positivo, emanadas da pólis, e as não escritas, do direito natural, provenientes dos deuses, de modo a buscar a questão ética da responsabilização de Antígona que invoca a "sua" lei - aquela que ela funda em ato - homóloga à lei do desejo.

        As leis não escritas são aquelas que fazem apelo a princípios gerais e vigem desde os tempos imemoriais. Sua validade reside exclusivamente na força de sua enunciação - cuja origem é divina - convocando ao ato, singular, de cada um e a cada vez. Elas dependem do julgamento moral de cada um, razão pela qual diz-se que as leis não escritas dos deuses exigem, para se fazer valer, o ato singular, que se inscreve numa dimensão propriamente ética.

      Com o início do século VIII a.C., e o advento da escrita, a lei passa a ser emanada de um consenso e válida para todos, caracterizando-se por sua universalidade. Passa a lei, agora escrita, a ser um conjunto de enunciados que, uma vez consignados num código, dispensará a enunciação, passando a letra da lei a valer por si mesma, deixando para trás o antigo caráter ético dependente da vontade individual, da tomada de posição por parte de cada um. Dessa maneira, a lei escrita, diferentemente, dispensa o ato de um sujeito para se fazer valer, fundamentando-se num acordo comum e extraindo sua força da positividade de uma formulação de valor universal.

        Dito isso, voltemos a Antígona. É, através de seu ato, que a nossa heroína advém, ali onde a linhagem amaldiçoada dos Labdácidas determinou o seu lugar, franqueando os limites desta determinação por meio de uma decisão - trágica - pela qual é a única responsável. Lacan, ao situar nesse mesmo ponto a ética da psicanálise, que diz respeito a um sujeito responsável pelo desejo inconsciente que o comanda, "faz ressaltar a semelhança na origem da determinação entre o campo dos deuses - dimensão real - e o inconsciente freudiano" (VORSATZ, 2010, p. 173). Antígona vê-se, assim, determinada por sua linhagem, submetida à injunção divina e, ainda assim, a única responsável por seu ato, que levará às últimas consequências.

          A tragédia, desse modo, apresenta o herói submetido às leis dos deuses, mas, paradoxalmente, responsável por seu ato. Ele, em momento algum, recua diante do seu dever, não sendo movido ou interrompido pelos sentimentos humanos de temor ou piedade. A ética da psicanálise, do mesmo modo, assenta-se sobre um fundamento trágico: ao mesmo tempo que o sujeito é comandado, é também responsável, e "é apenas em sua perdição que o sujeito tem a chance de encontrar, por um instante fugaz, um ponto de certeza" (p. 173). Ao final do seu Seminário 07, Lacan aduz que o herói trágico revela um verdadeiro acesso a seu desejo, afirmando que "a voz do herói não treme diante de nada" (p. 377). Assim, diante de seu ato, não há recurso ou apelo a nenhuma espécie de álibi, devendo o herói responder integralmente por ele.

           De modo semelhante, embora seja da lei dos deuses que Antígona pretende extrair a legitimidade de seu ato, cumpre lembrarmos que ela não faz, em momento algum, apelo a esses mesmos deuses no sentido de invocar um álibi que viesse a minorar sua responsabilidade em conceder as exéquias ao irmão morto, contrariando as ordens do seu tio Creonte, o novo tirano de Tebas, aceitando, ao contrário, a sua sentença, sem se questionar sobre a validade de seu ato, demonstrando a inseparável relação do sujeito com o desejo que o constitui. Como nos diz Lacan, seu ato transpõe os limites da Atè (1959-1960, p. 310), não sendo, em verdade, tributário da observância a qualquer modalidade de justiça ou lei, nem decorrente de uma suposta falta anterior decorrente de uma maldição sobre a linhagem dos Labdácidas, que os impeliria na direção do incesto, do fratricídio e da destruição de si. Ao contrário, como já dito, Antígona invoca a "sua" própria lei, fundada com seu ato, a própria lei do desejo.

          Para Lacan, as leis do céu equivalem às leis do desejo (1959-60, p. 380), de tal maneira que o campo dos deuses, da mesma forma que o campo do inconsciente, que articula o desejo, também poderia ser considerado como um campo que se perde (LACAN, 1964, p.122), uma vez que escapa a toda e qualquer tentativa de positivação. O ato da princesa tebana, assim sendo, ao franquear o limite imposto pela letra da lei que vigora na cidade, configura um real irredutível, impossível de ser inteiramente apreendido pelo campo simbólico do qual, não obstante, é tributário (VORSATZ, 2010). Portanto, a heroína trágica advém justamente nesse lugar onde tanto o dever religioso, quanto o familiar - o peso da maldição dos Labdácidas - são capazes de influenciar, sem, no entanto, serem capazes de determinar estritamente o seu ato. Essa é dimensão ética constitutiva do ato de Antígona. Mesmo se posicionando como uma Labdácida, um elemento da linhagem, ela é capaz de agir - singularmente - como Antígona. O campo do desejo, dessa forma, se descortina para o sujeito a partir de uma posição ética, onde a causa se coloca como exterior, assumindo-o em nome próprio.

           Portanto, podemos concluir dizendo que, como nos demonstra Antígona, em que pese a diferenciação simbólica entre leis humanas e leis divinas, a única lei que verdadeiramente se impõe ao sujeito humano é a lei do desejo, que Lacan aproxima do Wunsch freudiano, desejo inconsciente que comanda e pelo qual o sujeito deve se responsabilizar. Desse modo, ainda que a injunção do desejo se imponha a todo sujeito, a forma como isto se dá em cada um caracteriza a sua 'especificidade íntima', isto é, a mais particular de todas as leis, pois é por meio da posição singular de cada sujeito, em ato, que o desejo se constitui como lei.

[1] No seu seminário 8, sobre a Transferência, Lacan afirma: "Os deuses, isso é bem certo, pertencem ao real. Os deuses são um modo de revelação do real" (p. 51). 

REFERÊNCIAS

CORREA, Carlos Pinto. O trágico e a tragédia, vinculação e escolha.Cogito, Salvador, v.7, p.41-47, 2006. Disponível em: <https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-94792006000100007&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 14 out. 2016.

LACAN, Jacques. (1959-60). O Seminário livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.

_________ (1964). O Seminário livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.

______. A ciência e a verdade (1966). In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

SÓFOCLES. A trilogia tebana. 11. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

VORSATZ, Ingrid de Mello. Antígona e o fundamento trágico da ética da psicanálise. 2010. 297 f. Tese (Doutorado em Teoria Psicanalítica) - Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. 

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